Shoegaze – a história


Final dos anos 80. O Reino Unido dança aos sons vindos do noroeste da Inglaterra enquanto a saída de Johnny Marr dos Smiths chocava os que haviam seguido religiosamente a banda durante os anos anteriores. A música electrónica começa a afirmar-se definitivamente como uma força no panorama britânico, e os KLF observam como podem explorar a indústria da música para seu proveito e, acima de tudo, gozo pessoal. No entanto, no vale do Tamisa uma série de bandas parecia querer começar uma guerra… ou pelo menos, fazer a música de fundo para uma. Com concertos comparáveis a um avião de grande porte a descolar, álbuns extremamente elaborados e um conceito de “finanças” digno de um Tony Wilson, criaram algumas das melhores músicas de guitarra da era. Nascido algures entre o dream pop e o noise pop, isto é o shoegaze.

Duas das maiores influências no género originaram, curiosamente, na Escócia: os The Jesus And Mary Chain da Creation Records (e mais tarde na Blanco y Negro) e os Cocteau Twins da 4AD. Estes contribuíram com a melodia e as letras, que antes de serem entendidas ou terem algum tipo de significado (Elizabeth Fraser, vocalista da banda, admitia que era frequente a letra ser improvisada ao vivo) serviam como mais uma textura ao som da banda, como é possível obervar em Ivo, a faixa de abertura de Treasure.

Dos primeiros herdavam o som agressivo da wall of sound popularizada por Phil Spector anos antes e a pose em palco, quase imóveis e com aspecto aborrecido enquanto tocavam em volumes ensurdecedores. Um dos melhores exemplos é Never Understand, single presente na obra prima da banda Psychocandy, que inclusivamente muitos consideram como o primeiro álbum a cair no alcance do shoegaze, ou até mesmo o seu primeiro single, o ensurdecedor Upside Down.

Igualmente importante foi o space rock alternativo dos Spaceman 3, da terra que viu nascer o rugby. A banda de Jason Pierce e Peter Kember deixou a sua marca no género com as suas melodias construídas com base no drone das guitarras, percussão simples e vozes leves, quase como um sussurrar por cima dos instrumentos, caindo entre as duas bandas escocesas antes mencionadas. A sua postura em palco era bastante relaxada, tocando muitas vezes sentados, iluminados apenas por projectores com padrões psicadélicos, um elemento que musicalmente foi crescendo de importância na banda, tudo no espírito que regia a banda: “Taking drugs to make music to take drugs to“. Muitas outras bandas são referidas como influências: Os Velvet Underground, Dinosaur Jr. ou os Sonic Youth, principalmente pela forma como conseguiam arrancar sons menos convencionais dos seus instrumentos de cordas.

Conforme admitido pelo seu frontman, as duas últimas são consideradas como as maiores influências para a banda referência do género (apesar dos próprios se colocarem do lado de fora do género), os My Bloody Valentine, cujas sementes foram plantadas no final dos anos 70 quando o guitarrista americano radicado na Irlanda desde os seis anos Kevin Shields e o baterista Colm O’Ciosig responderam a um anúncio para uma banda. No entanto, se a presença de ambos na banda não iria durar, a amizade sim, e em 1983 a banda nascia com Dave Conway como vocalista e a namorada do mesmo, conhecida apenas como Tina, como teclista. Bastante influenciados por bandas post-punk como os The Birthday Party de Nick Cave, o primeiro disco (This Is Your Bloody Valentine) pouco ou nada tinha a ver com o som futuro da banda, gravado em Berlim numa “tour permanente” pela Europa. O insucesso fazia com que a banda voltasse a Londres, e a sua primeira vítima com Tina a sair da banda. Para preencher o vazio, os membros restantes da banda procuraram um baixista, e escolheram Debbie Googe a partir de uma recomendação de uma ex-namorada da mesma ainda em Berlim. Estávamos em 1985, e no final do ano o segundo EP da banda, Geek!, saía, mas de novo sem conseguir criar o impacto esperado pela banda e ainda musicalmente longe do que viria a ser o seu som característico. Isso iria acontecer com The New Record by My Bloody Valentine mais tarde no mesmo ano, e outro EP em 1987 de seu nome Sunny Sundae Smile, com a faixa de abertura com o mesmo nome.

Conway, no entanto, iria abandonar a banda pouco depois para seguir outro caminho (é agora escritor) devido à então falta de futuro da banda e uma infecção intestinal que o impedia de participar nas tours frequentes. Com o projecto em risco, Kevin Shields procurou por um novo vocalista, e após os anúncios colocados na imprensa terem sido infrutíferos, chegou aos ouvidos uma recomendação para Bilinda Butcher - “conseguia cantar bem as nossas músicas, só tinha que lhe mostrar como tocar guitarra“, diria mais tarde. Assumindo o papel de vocalista secundário, Shields tinha aqui a formação da banda com o qual iria oferecer uma alternativa aos sons vindos do Norte, na mítica Haçienda de Tony Wilson, New Order e da Factory. E assim, com os dois EPs (Strawberry Wine e Ecstasy) estava aberto o caminho para o som definitivo da banda, não sem antes aceitarem a proposta de Alan McGee e juntarem-se à Creation Records, onde iriam lançar o seu primeiro álbum, Isn’t Anyhting.

Ao mesmo tempo, apareciam outras bandas com explorações semelhantes, apadrinhadas pelo patrono da Radio One John Peel, que as convidava a gravar uma das suas famosas Peel Sessions quando muitas vezes as bandas ainda contavam apenas com um EP (ou nem isso) na sua discografia. O NME chamava a estas bandas shoegazers pelo hábito dos músicos permanecerem imóveis e a olharem fixamente para os pedais da guitarra, um termo que ainda hoje é bastante discutido por ser dúbia a intenção com que foi inicialmente utilizado, o mesmo se passando com a denominação de “The Scene That Celebrates Itself” pela agora defunta Melody Maker a um grupo restrito de músicos que assistiam regularmente aos concertos uns dos outros. Entre essas bandas figuravam os Lush, com um som a fazer juz ao nome, Slowdive, Chapterhouse e os Ride, que em 1990 os marcavam a sua estreia com o aclamado Nowhere, enquanto os Chapterhouse iriam na sua estreia lançar outro dos álbuns definitivos do género, de seu nome Whirlpool, no Verão de 1991, ano que iria ser o auge do género com os Slowdive também a darem a sua contribuição com o seu álbum de estreia Just For One Day. A continuar a tradição de EPs da banda, Os My Bloody Valentine aqueciam com Glider (1990) e Tremolo (1991) antes de lançar a sua obra prima: o LP Loveless em Novembro de 1991, frequentemente considerado um dos melhores dos anos 90 (conseguindo a distinção de melhor por diversas ocasiões), num processo de anos, levando o patrão da Creation Alan McGee e dezenas de engenheiros ao desespero (um dos quais Alan Moulder, que iria mais tarde trabalhar em álbuns como Siamese Dream dos Smashing Pumpkins e The Downward Spiral dos Nine Inch Nails) com as tentativas de Kevin Shields em conseguir reproduzir os sons que imaginava na sua cabeça.

No entanto, a partir daqui o género começou a decair. Apesar de fazerem parte da popular Rollercoaster Tour em Março de 1992 com os emergentes Blur (ainda na sua fase baggy), Dinosaur Jr. e os The Jesus and Mary Chain, os My Bloody Valentine não iriam voltar a lançar material novo (excepto uma cover do hit de Louis Armstrong We Have All The Time In The World para uma compilação da Island Records, que os acolheu após saírem da Creation por Loveless ter levado a empresa à quase falência com gastos na ordem que vão das “15 a 20 mil Libras” tendo a banda suportado grande parte do gasto restante (segundo Kevin Shields), às 400 mil (rumores), enquanto os Slowdive tentavam desastrosamente fazer uma tour auto-financiada pelos Estados Unidos, país onde o género nunca causou impacto ou atraiu seguimento além dos Galaxie 500, conhecidos, entre outras músicas, pela brilhante cover de Ceremony dos Joy Division/New Order.

Aliás, o mesmo se iria passar no resto do globo: tirando excepções como os Bailterspace neo-zelandeses, o fenómeno do género era confinado às Ilhas Britânicas. A maior ameaça ao género seria com a “invasão” do grunge, com uma sonoridade mais acessível (tanto para quem ouve como para quem tenta tocar) e um acolhimento mais favorável da imprensa, que havia sempre visto a Scene That Celebrates Itself com algum desdém, considerando um género uma simples “brincadeira perdulária de classe média” (o setup de Kevin Shields em 1991 incluía seis pedais, por exemplo – e sem conseguir repetir ao vivo as passagens mais complicadas de Loveless).

O canto da sereia do género foi dado pelos Slowdive já em 1993 com o igualmente mítico Souvlaki, com uma formula algo semelhante ao som dos My Bloody Valentine, embora bastante menos “bélico”, como é possível ouvir na segunda faixa, Machine Gun.

De resto, no mesmo ano os Suede lançavam o álbum homónimo que iria transformar a música Britânica pós-Madchester e levá-la o Britpop, gênero que dominou as atenções nas ilhas nos anos 90, condenando o shoegaze ao esquecimento. Sem o apoio das editoras, da imprensa (muito por culpa da imagem algo reclusiva dos músicos e ao contrário das bandas do emergente Britpop serem notoriamente maus entrevistados) e com uma fanbase diminuta por nunca ter entrado no importante mainstream, as bandas foram forçadas ou a mudar a sua aproximação à música ou simplesmente acabar.

Os Ride acabaram por ceder precisamente por tentarem manter o som no mesmo rumo que as bandas contemporâneas, o que levou ao seu final em 1996, tendo Andy Bell, anos mais tarde, juntado-se aos Oasis, o expoente do Britpop, enquanto Loz Colbert iria juntar-se aos Jesus and Mary Chain no seu regresso em 2007. Os Slowdive transformaram-se nos Mojave 3, progressivamente mais acústicos e os Lush transformam-se numa banda com um som mais aproximado do Britpop moda da época e continuaram até 1998, apesar da morte efectiva do grupo ter ocorrido dois anos antes com o suicídio do baterista Chris Acland. Em 1995 os My Bloody Valentine entraram num hiato do qual teimaram em sair, e Kevin Shields manteve o seu low-profile habitual, aparecendo pouco nos anos seguintes, tirando a sua participação na banda sonora do filme Lost In Translation e as colaborações com os Primal Scream (entre outras bandas) onde se encontrou com Bobby Gillespie, baterista dos JAMC durante a era Psychocandy, e a mesma distância para a indústria repetiu-se com os restantes membros da banda. Entre os que se adaptaram com maior sucesso, os The Verve, que apareceram já no ciclo final do Shoegaze acabaram por criar um dos hinos do Britpop com Bittersweet Symphony.

Apesar de ter tido um sucesso comercial muito limitado, o impacto do Shoegaze começou a ser notado nos finais deste século. Bandas de post-rock como os Islandeses Sigur Rós iriam pegar em alguns dos elementos do shoegaze e adaptá-los no seu trabalho – o som intenso da banda e o uso das letras (pelo menos para uma boa parte da sua fanbase fora da Islândia) e voz como textura sonora e as experiências em hopelandic, língua inventada pela banda em ( ) prestam uma homenagem ao shoegaze, bastante mais próxima das melodias em Treasure do que em Psychocandy. Em França, os M83 adoptaram igualmente a mesma aproximação, mas com um tratamento mais electrónico, como é possível ouvir em Run Into Flowers, a terceira faixa de Dead Cities, Red Seas & Lost Ghosts de 2003.

Existe igualmente um movimento “Newgaze” influenciado pelo som das bandas originais que fizeram parte do movimento, e da terra natal de Kevin Shields aparecem os Asobi Seksu, que com a mesma intensidade sonora, contam com algumas músicas com letras em japonês cantadas por Yuki Chikudate, numa aproximação que fica entre os My Bloody Valentine de Sunny Sundae Smile e os Cocteau Twins com uma pitada de J-Pop. E finalmente, após uma década de rumores, os próprios My Bloody Valentine decidiram completar a sua trilogia com um novo álbum a ser lançado “brevemente”, segundo palavras de Kevin Shields.

Algo que torna um álbum musicalmente relevante à prova de tempo é o número de imitadores que cria e quantos deles conseguem superar a sua inspiração. Psychocandy, 22 anos depois, continua tão fresco e inovador como no dia em que saiu, já que se mantém como a maior referência do noise pop, e poucos conseguiram alcançar o nível da banda dos irmãos Reid nesse campo. O mesmo se passa com grande parte do trabalho das bandas que foram agrupadas no género: com uma produção cuidada, cada banda tinha a sua forma de dar detalhes únicos aos seus álbuns, o que resultou em sons distintos dentro do mesmo estilo. Confinado a uma estreita localização no espaço e no tempo, poucas foram as bandas que se aventuraram neste campo, mas cada uma delas deixou pelo menos um LP que merece ser ouvido com atenção, e cada um acaba por ser um retrato de um som perdido, e muitas vezes incompreendido, no final dos anos 80 e princípio dos anos 90.

Recomendações

Influências:
Treasure – Cocteau Twins (4AD, 1984)
Psychcandy – The Jesus and Mary Chain (Blanco y Negro, 1985)
Playing With Fire – Spaceman 3 (Fire, 1989)

Shoegaze:
Isn’t Anything – My Bloody Valentine (Creation, 1988)
On Fire – Galaxy 500 (Rough Trade 1989)
Nowhere – Ride (Creation, 1990)
Whirlpool - Chapterhouse (Dedicated, 1991)
Loveless – My Bloody Valentine (Creation, 1991)
Souvlaki - Slowdive (Creation, 1993)

Influenciados pelo Shoegaze: 
Ágætis byrjun – Sigur Rós (Fat Cat, 1999)
Dead Cities, Red Seas & Lost Ghosts – M83 (Gooom, 2003)
Citrus – Asobi Seksu (Friendly Fire, 2006)
Out Of The Angeles – Amusement Parks On Fire (V2, 2006)
We Can Create – Maps (Mute, 2007)

Paralelos:
The House Of Love – The House Of Love (Creation, 1988)
III - Sebadoh (Homestead, 1991)
Doppelgänger - Curve (Anxious 1992)
Painful – Yo La Tengo (Matador, 1993)
Xuvetyn – Lovesliescrushing (Projekt, 1996)

Links:
Wikipedia en+pt
Last.fm
All Music Guide
shoegaze.co.uk

*(Esta matéria foi criada e postada no seguinte blog.)

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